Irritações

Fragmento 180

 
Porque é que Proust não tem outro nome para dar ao desejo doentio de Swann por Odette, do Barão de Charlus pelo violinista Morel e de Marcel por Albertine? Como é que o patologista pode ter uma análise tão fina da doença, fazer um diagnóstico tão preciso de todos os seus males, descrever e nomear, por diversas vezes e com excepcional precisão, as sombras e as franjas das suas múltiplas degenerações (o ciúme, o controlo, a imaginação desconfiada e desregrada, o domínio, a paranóia, a perseguição, a desconfiança, a humilhação, a posse, o vício, a semelhança entre este tipo de apaixonados e os opiómanos...), e depois falhar de um modo tão grosseiro a catalogação da doença? Eu acredito que os grandes escritores usam a língua de um modo literal. E chamar amor a isto é praticamente a mesma coisa que chamar sede ao impulso que leva um alcoólico a beber.

Crianças 5

O armário


Ser um armário é muito chato. Abrem a porta, fecham a porta. Sempre a pôr e a tirar coisas. Estou sempre quieto, sempre quieto, sempre quieto. E abrem a porta e fecham a porta. Estou cheio, cheio, cheio. Estou tão cheio que não posso mais. E com certeza vou rebentar.

Sobre os tempos de guerra

Sonho CIV


Estávamos no meio de uma guerra e, portanto, as raparigas eram obrigadas a deitar-se com quem aparecesse.
 
Mesmo assim, a F. de Riverday conseguia escolher e, afinal, parecia que as coisas não eram assim tão más.
 
No fim, ofereceram às raparigas a possibilidade de escolher entre uns pijamas limpos que estavam expostos em cima de mesas, mas só havia partes de cima, não havia partes de baixo.
 
Foi isto que lhe inoculou uma angústia difusa e insuperável.
 
Quando terminou a guerra e a deixaram regressar a casa, a F. de Riverday não conseguiu reconhecer a casa.
 
O jardim estava transformado num matagal e, na sala, teve de dar um beijo a uma mulher velha que estava sentada e que não sabia quem pudesse ser.
 
Seria a sua mãe? A sua avó?
 
A mulher não se levantou.
 
Era uma mulher fria e antipática e a F. de Riverday não queria dar-lhe um beijo.
 
Na sala de jantar estavam várias pessoas à volta de uma mesa, mas também não conseguiu reconhecê-las.
 
De resto, ninguém se levantou.
 
Das janelas via-se uma praia de cores alegres, pontuada aqui e ali pelas copas circulares e coloridas dos guarda-sóis. 
 
Foi só perante essa visão alegre que Riverday sentiu a violência que antes não sentira.
 
A angústia perante a visão suave foi de tal modo insuportável que lhe fez faltar o ar.
 
Desfeito em mil pedaços que voavam em todas as direcções ao mesmo tempo.
 
O corpo.

Roturas e Ligamentos, de Rita Taborda Duarte e André da Loba

 
 
 
 
Acredito que poucas coisas há tão difíceis como escrever sobre poesia - e mais ainda sobre poesia quase acabada de fazer, ou ainda a fazer-se. Porque é que a poesia resiste tanto? Porque é que nos envolve e fascina e nos incomoda como se fosse alguém que de súbito nos entrasse em casa, sem ser convidado?
 
Quase sempre a poesia carrega um excesso de intimidade - um excesso de corpo - e uma ausência de distância. Aquele «tu» que tantas vezes os poemas convocam faz com que nos fitemos cara a cara sem um pedido de licença. E talvez por isso a poesia seja sempre tão difícil de ler até mesmo para o próprio que a escreve, como se o imprevisto em pessoa resolvesse entrar sem aviso prévio por nós adentro.
 
Não por acaso, este livro que foi editado de forma invulgarmente cuidada pela abysmo está composto em caracteres «Amor», de Frantisek Storm, em papel de cento e cinquenta gramas, e abre-se em duas vias, pelo fim e pelo príncipio, isto é, pelos poemas da Rita Taborda e pelas imagens especialmente planas e musicais do André da Loba.
 
Não deixa de ser fascinante como a própria forma física e desconcertante do livro que nos faz lembrar a de dois gémeos siameses rima com a tensão que atravessa os poemas e as imagens.
 
Reencena-se aqui uma tensão muito antiga, um conflito muito velho. É entre a vida e a arte, entre as palavras e os gestos, entre o poema que diz amor e o corpo que faz o amor que existe uma fractura exposta. E é de facto no plano desta fractura e desta violência que se criam as roturas e ligamentos que vão criar um novo corpo, porventura, uma nova poesia.
 
As palavras são as «pedras perfiladas que fazem os mundos», mas também são «uma porcaria imensa: / uma mistura líquida de cuspo e restos de comida.» «Não é possível fazer poesia com restos de palavras mastigadas / que azedam num instante, ainda para mais se está calor.» A palavra «amor» podia ser «amor» ou «Boby, Tejo ou Lassie». «Qualquer nome lhe daríamos, ao amor / e o resultado seria sempre o mesmo: / Um ganido tímido / a morder-nos de cio o coração da noite.»
 
Porque se por um lado o amor é sempre «amor não-dito», por outro lado diz-se que «É preferível escrever-te que beijar-te: / a folha rasa    limpa    é corpo    liso.» E é urgente soletrar a palavra que fariam os corpos dos amantes, pois «nada / existe sem a palavra que o diga». 
 
Porém, ao contrário do que sucede nas imagens de André da Loba, que tendem para uma resolução das tensões em jogo, nesta escrita o conflito não se resolve, o que lhe imprime um aspecto atonal, suspensivo e, paradoxalmente, pela qualidade aristocrática do desencanto, qualquer coisa de encantador.
 
 
Escrevi-te o meu poema   dicionário ao lado
silabar de laje e de granito na gravidade da mesa.
Mas nem ao de leve te raspou a pele,
sopro fátuo e lasso     agilidade de sombra sob o sol.
Sequer vento emaranhando o teu cabelo.
 


Sobre o sentimento de inferioridade

Sonho CXXV


A Françoise estava na sua antiga faculdade, onde em tempos estudara, e à sua frente estava uma rapariga fascinante, que todos pareciam admirar.

O seu corpo era tão brilhante e com um aspecto tão escorregadio, por causa das roupas sofisticadas muito coladas à pele, que ela parecia um peixe.

Os cabelos negros muito lisos e brilhantes caiam-lhe sobre os ombros, cintilantes, e toda ela fazia lembrar um tubarão, tal era o seu poder.

«Que ridícula que és!...» Disse Françoise a si própria, ao lembrar-se das suas fantasias de grandeza. «Como poderias equiparar-te a um tal animal?»

Sentiu-se tão vexada ao apercerber-se da sua falta de sentido da realidade que procurou escapulir-se discretamente.

No entanto, parecia que o planeta era aquele mesmo planeta do futuro que se repetia em tantos dos seus sonhos, esse planeta em que todas as casas são subterrâneas e em que parece viver-se em estado de guerra ou de catástrofe eminente.

Françoise M. via ao longe Heinrich Hart, por quem estivera tão apaixonada, mas era fácil aperceber-se de que ele só tinha olhos para as poderosas raparigas.

É que a primeira rapariga, escorregadia e brilhante como um peixe, pertencia a um grupo de jovens que eram todas parecidas entre si, como uma matilha de lobos ou um batalhão de amazonas.

E à pobre Françoise inspiravam-lhe todas medo, pela sua força evidente.

De súbito, porém, a Françoise viu em jorros o sangue correr pelo nariz de uma destas raparigas e, logo de seguida, viu também o sangue a correr em jorros pelo rosto daquele que ela tinha amado.

Instintivamente, levou a mão direita ao seu nariz, para ver se o sangue também corria, e pensou: «É uma doença... Se calhar já estamos todos contaminados...»

Reparou então que estava espalhado pelo chão muito escuro, nos cantos, um líquido verde que alastrava como uma mancha de petróleo no mar.

«É aquilo... Temos de fugir antes que seja tarde!..»
 
Françoise olhou para a sua mão direita que estava cheia de sangue e preparou-se mentalmente para morrer.
 
«A vida é só isto.»

Os elevadores que a poderiam levar à superfície estavam já atulhados de gente que se esmagava em pânico e por isso teria de utilizar um elevador daqueles que ninguém usava porque serviam apenas para o lixo e para as mercadorias.


Quem a compreendeu de imediato foi um outro homem que era afinal o mais perspicaz desse grupo.

 
«Precisamos deles como quem viaja de carro e precisa de encher o depósito, mas os juízos morais são das coisas mais voláteis deste mundo.»

 
Era o que pensava a Françoise enquanto se metia dentro de um contentor em conjunto com esse que afinal era muito diferente do que julgara.

 


Nuno Maria 2015

 

Pluma

Fragmento 179
 
 
 
- Queria uma pluma, por favor.
 
- De asa vazia?
 
Foi este o fragmento de um diálogo captado de relance que fez com que a minha imaginação levantasse voo. Uma pluma de asa vazia... Seria uma nova bebida alcoólica? Mas que fina competência, que arte particular se ocultaria nessa poética expressão, com leveza tão afim de pluma - a «asa vazia»? Seria a asa de uma caneca ou de um moderno e elegante copo alto de vidro para uma nova e fulgurante bebida com um efeito realmente transcendente? Um novo motor para a notável explosão infinita que faz cair em cascata as sensações como peças de dominó ou baralhos de universos no lugar de cartas? E porquê «vazia»? Qual a diferença, se fosse «cheia»? Na minha imaginação podia ver como se numa tela uma pluma branca e uma asa ainda mais branca, asa sem corpo, sem pássaro e sem sentido e que mesmo assim não saberia como seria «vazia». Era toda uma via láctea que se estendia diante do meu desejo, por causa dessa dificuldade de imaginar a «asa vazia». Uma dificuldade acrobática que me provocava uma velocidade, um entusiasmo e uma excitação semelhantes aos de uma leitura difícil que me prometesse alguma espécie de esclarecimento. Foi por isso que instintivamente e quase sem dar conta segui o interlocutor daquele diálogo, para perceber afinal que «pluma» era uma bilha de gás (aliás, cor de laranja) e que «asa vazia» fora uma corruptela que a minha imaginação compusera a partir da pergunta mais prosaica da menina e que era simplesmente: «Traz a vazia?»
 
Mas logo o meu pensamento descobriu uma semelhança humorística entre este acontecimento e o de encontrar no centro de Cascais uma estátua que me parecia de Mao e que afinal era de Dom Carlos I (porque afinal não é assim tão pouco frequente que diferentes coincidências conspirem com uma outra arte que é a de nos rirmos de nós próprios).
 
Parece que não existem no trivial da vida humana bem organizada e estratificada os mesmos abismos e intervalos, o mesmo non-sense e a mesma intensidade que a toda a hora entram nos nossos sonhos, na nossa infância e nos nossos poemas, livros ou paixões. Nem existe a estátua de um comunista chinês no centro de Cascais, nem ninguém pede uma pluma de asa vazia num posto da Galp.
 
Mas parece que a nossa vida quotidiana será sempre invadida do modo mais imprevisto por estes entusiasmos inefáveis que se dirigem aos mundos que só a nossa imaginação pode compor, planos desconhecidos ou grãos resistentes que sobram de uma outra coisa sem nome e que nos habita sempre paralelamente, como um inquilino fantasma. 
 

Crianças 4

   
Gursos e Urilas
 
Formiranhas e Aramigas
 
Tartaróis e Carcarugas
 
 Tubarés e Jacarões

 
 
Khare, «Walking Bird», 2011
 
 
 
 

Romance em vez de predação

Sonho CLX


A uma excessiva declaração de amor, F. M. respondeu:

«Fico perdida no meio da imensidão.»
 
O que queria dizer «não».
 
O seu interlocutor, porém, ao ver que não conseguia levar as coisas a bem, agarrou-lhe no pescoço e lançou-a ao chão com a intenção de a violar, mas o sonho interrompeu-se no ponto preciso em que teriam início a dor e a humilhação.
 
Ecrã negro - quão frágil é a fronteira entre o desejo e a violência!...
 
Trocar os nomes das coisas é o alibi predilecto dos criminosos e dos complacentes.
 
Amor em vez de luxúria. Protecção em vez de domínio. Prudência em vez de controlo. Interesse em vez de cobiça. Romance em vez de predação.
 
Sempre fica mais bonito.

(Artur Borboleta) - Fragmento 178



Pedaço de papel colorido que se agita no ar,
 
ao sabor do vento, assim a borboleta
 
voa - e tudo o que pede é a limpidez do azul,
 
ou um vidro em que poisar.
 
 
Delicada ocupação, essa,
 
a de adejar de flor em flor,
 
poisar ao de leve e logo escapar
 
com um voo impossível de fixar.
 
 
Dêem-lhe o sol, as flores e a brevidade
 
de existir sem ter de pensar.
 
 
Existe como um trilo mínimo na imensa sinfonia da terra
 
- ponta ou gume terminado de um excesso de alegria -
 
e que bom que deve ser voar com essa ausência 
 
de nem sequer saber ou sonhar - o que seja habitar. 

Quartos Alugados, de Alexandre Andrade

Fragmento 177
 
 
Um grande escritor escreve quase sempre para daí a um século. Ele lança uma seta que será apanhada daí a muitas décadas, provavelmente por um outro escritor que a lançará de novo, e assim sucessivamente. A ideia não é minha, é de Deleuze, mas traduz uma circunstância real que está no âmago da nossa dificuldade em julgar um contemporâneo. E não apenas porque qualquer coisa de novo que se produza agora, no presente, tenha a virtude de passar invisível, porque é uma novidade. Não penso que o principal critério para julgar arte seja a novidade, até porque essa novidade, precisamente, é inescapável em qualquer produção original. É neste ponto que me separo do escopo geral da ideia em Deleuze. O juízo da posteridade só se verificará quando estivermos todos mortos, e a ideia não é simpática, nem para os egotistas, nem para os caçadores de fama, é um facto. Mas a ideia também não deixa de ser delirante e divertida para uma certa espécie de humoristas (rara, e geralmente incompreendida) que primam por não se renderem a nenhuma teoria definitiva sobre o sentido da sua própria vida.

Superado o pedido de benevolência, falemos de Alexandre Andrade.
 
Existem quatro coisas que o distinguem. Um português puríssimo que não se rende a uma tentação grosseira de inovar por inovar, ou de ser diferente por ser diferente. Uma cultura real e assombrosa, que não deriva da vaidade, mas de uma viva curiosidade e de uma atenção vital às coisas humanas. Um humor que está para além do irreverente e que funciona como uma máquina de desmontar lugares-comuns (como uma máquina de abstracção, portanto). Uma percepção subtil.
 
Lembro-me, há duas décadas atrás, de um minúsculo pormenor num romance dactilografado do Alexandre, que me acompanhou toda a vida. Alguém (não sei se Vera), tinha o hábito de colocar um fio de cabelo entre o puxador e a ombreira da porta, para garantir que a sua intimidade não teria sido violada.
 
Não sei exactamente porque cito este pormenor. Talvez porque nele se condensa o mesmo tipo de surpresa e a mesma dimensão de subtileza que encontro em frases como: «Péricles deixou-se ir, imaginando que regressava a uma cidade repleta de enigmas mas nunca cruel o suficiente para sonegar as soluções desses enigmas àquele que se dispusesse a encontrá-las, munido apenas das suas mãos nuas, do seu engenho humano, do seu corpo vertical estremecido muito ao de leve pela pulsação.»
 
Está no limite do sensível, sim, mas somos «corpos verticais» estremecidos «muito ao de leve pela pulsação.» E é verdade que a respiração dos outros (e a nossa) marca a passagem do tempo «como um metrónomo».
 
Nas séries de quartos alugados que desfilam ao longo dos contos que compõem o livro, muita gente, com nomes incompossíveis (Péricles, Mónica, Ágata, Renato, Inge, Ole...), e em geral nómadas (estudantes, gente tão fora das sua terra que chega a alugar quartos em cidades imaginárias, donos de nada, desocupados ou entre um estado e outro estado, ainda por definir), uma gente a quem o Alexandre dedica uma atenção vital, compassiva, rigorosa, amorosa, por vezes satírica, esta gente compõe uma pluralidade alegre da qual se destaca uma certeza luminosa e arejada - a de que uma pessoa estará sempre para além de uma descrição.
 
A máquina do humor que serve, a meu ver, este propósito, é complexa e daria pano para mangas desmontá-la. Há sempre uma viragem, uma curva irreverente em cada um dos contos, que lança no ar esta certeza como um foguetão. Pode ser a figura oculta e enigmática de uma Mónica a desvendar por um detective improvisado, uma Mónica que de súbito entra no apartamento do próprio detective e que desfia em alíneas, e na primeira pessoa, todos os seus mistérios, ou pode ser a destinatária de uma extravagante declaração de amor («O Ramo Dourado», de Fraser, copiado à mão pelo amado) que passa abruptamente de uma hipótese de explicação transcendente para uma lista trivial das preocupações quotidianas, como o estado da canalização ou da rede eléctrica do apartamento.
 
As passagens são sempre incrivelmente rápidas, abruptas, mas paradoxalmente naturais.
 
Em suma, respira-se.

F. de Riverday I

Fragmento 176


Quando dava um passeio à beira-mar, a F. de Riverday viu uma menina passar de mão dada com o pai, e o seu coração apertou-se.
 
Como gostaria alguma vez de ter dado a mão ao seu pai!...
 
E aqueles dois faziam-no com naturalidade, como se esse fosse um gesto simples e tranquilo... 
 
A menina tinha um ar confiante e altivo, cheio de si e  ao mesmo tempo inexpugnável.
 
Que força não teria ela, protegida por um tal gesto de carinho e pelo homem mais importante da sua vida de menina?
 
F. de Riverday só muito raramente se permitia sentir essa tristeza em relação a seu pai.
 
Quando um «nunca» é realmente nunca, um nunca verdadeiro, real, imenso e impossível de sentir, a percepção humana resvala para o domínio do insensível, que é também o do insuportável.
 
A humanidade tem estratégias incríveis para lidar com a dor.
 
A insensibilidade. O esquecimento. A invisão.
 
A F. de Riverday só uma vez em dez anos lhe caíra uma lágrima - uma única lágrima, de facto - uma lágrima ácida e efervescente que ameaçara sulcar-lhe o rosto e dividi-lo em dois, de tão ardente e dolorosa que era.
 
E no entanto, era um homem agradável.
 
Cordial em público, distinto, elegante, frio como uma pedra com ela, F. de Riverday, mas gentil com o seu irmão, com a sua mulher e os seus pais e sempre cumpridor, polido e educado.
 
Na verdade, uma tal condição treinara-a numa arte infeliz - a de ser capaz de amar a indiferença.
 
Talvez porque assim preservasse a sua quota parte do amor.
 
Preferível a esse vazio abismal e tremendo que é o de nem amar nem ser amado, pelo menos guardava um pouco dessa doçura, desse calor e dessa esperança ao treinar-se nessa esquisita forma de amar que é mais parecida com uma arte de desfiar conversas meramente sonoras diante de um surdo.
 
Sempre e de um modo fatal ela procurava reencenar esse deserto, essa aridez e a desolação de um amor teimoso e infecundo, enviando cartas sem resposta, dedicando a alma a casos insanáveis, ou amando ainda outra espécie de indiferentes, como Orlando I.
 
Porquê?
 
Porque assim era como se dissesse à vida: «Desta vez, vida, conquistei-te»?
 
Não há dúvida.
 
A nossa alma segue desígnios incompossíveis.

Frases que nos viajam

Fragmento 175


Uma pequena notícia, hoje:
 
«A sonda New Horizons descobriu a existência de céus azuis em Plutão e água gelada na superfície do planeta-anão. A água gelada só é visível nalgumas regiões do planeta-anão - grande parte da superfície de Plutão não mostra gelo de água exposto. Noutras áreas, a água gelada "estará coberta por outros gelos mais voláteis", explicou o cientista Jason Cook. "Perceber porque é que a água aparece onde aparece, e não noutro lugar, é um desafio que estamos a começar a enfrentar".»
 
É incrível o que uma expressão como «outros gelos mais voláteis» nos pode fazer.

 
GELO DE ÁGUA EXPOSTO
 
ÁGUA GELADA
 
OUTROS GELOS MAIS VOLÁTEIS
 
...
 

Não se trata apenas da sensação que se produz quando tentamos imaginar um «gelo volátil», quando a única forma volátil terrestre que conhecemos da água se experimenta sob a forma de um gaz. «Gelos mais voláteis» catapulta-nos para um outro plano da existência física, uma em que os corpos sólidos e gelados se volatilizem.
 
Coloco no entanto a hipótese de que o termo «volátil» não esteja empregue na forma literal, mas na forma metafórica, no sentido de «passageiro».
 
Segundo esta hipótese, a viagem não se produziria. Gelos mais passageiros são só esses que se derretem mais depressa, e isso não é difícil de imaginar.
 
Havia também na notícia a referência à atmosfera de Plutão, com um aspecto de «fuligem», fuligens avermelhadas e azuis, compostas por «polinas». E como esta palavra - «polinas» - nos é inteiramente desconhecida, é toda uma estrada que se desvela, como um imenso corredor atrás de uma cortina, como um palácio fascinante e composto de desmesuradas alas incógnitas.
 
Todo o desejo se acende nesta viagem imóvel.
 
Há ainda a recordação de ligeirezas e ventos que se comunica nos sons semelhantes das duas palavras justapostas - «gelos» / «voláteis» -, nos ésses, nos vês, nos éles, nos gês e nos ês, e que nos faz dançar como bruxos ou feiticeiros, em colunas de gaz e de euforia. Há ainda a imagem viva da transparência do gelo e da água e a franja de velocidade que se abre em «outros». «Outros gelos».
 
Viajamos porventura porque o cientista escreveu mal, ou porque lemos mal.
 
Que interessa?
 
A viagem entretanto aconteceu. 


Técnica de espoliação

Fragmento 174


Há pessoas que não fazem a mínima ideia do que possa ser ter uma opinião favorável a respeito de si mesmas.

Habituaram-se desde muito cedo a colocar tudo em causa, começando por si próprias. Estiveram muito perto da loucura, ou passaram por lá. Nunca tiveram grandes atenções. Também não sabem muito bem o que é o amor, ainda que não desistam de o imaginar. Desconfiam em geral de si mesmas, muito mais do que dos outros, mas também desconfiam dos outros. E em crianças, é possível que os pais ou figuras tutelares fossem cruéis, indiferentes ou demasiado exigentes.
 
Estas pessoas, se lhes disserem que em geral as pessoas tendem a ter uma opinião «demasiado favorável» a respeito de si mesmas, podem por momentos convencer-se que a sua habitual opinião desfavorável, ainda assim, é qualquer coisa de favorável ou mesmo - demasiado favorável.
 
Técnica de espoliação de um miserável - eis no que consiste esta (auto) manipulação.

E o resultado é nulo.

Liberdade de voto

Fragmento 173
 
 
Em 25 de Abril de 2015, a democracia portuguesa, tal como a conhecemos, fará quarenta e um anos.

Como é possível que, volvido quase meio século sobre uma tal conquista, seja a abstenção quem vence por maioria as últimas eleições?
 
Quer queiramos quer não, este é um dos grandes espectros que nos assombram.
 
Mas será que uma democracia que durante quarenta anos fez dançar as cadeiras da assembleia entre dois partidos é uma democracia em cuja salubridade e maturidade possamos - e devamos - confiar?

Não podemos impedir-nos de observar como a relação do conjunto das pessoas portuguesas (vulgo - povo) com aqueles que as governam se assemelha à daqueles «casos amorosos» em que um dos cônjuges, apesar de séria ou subtilmente maltratado pelo outro, fica paralisado na acção pela mistura explosiva de dois afectos poderosos - a dependência e o medo.
 
A quem pertence uma grande parte da responsabilidade colectiva pelo estado do país após mais de trinta anos de governo às mãos de dois grandes partidos, senão  a esses mesmos partidos?
 
Eis o famoso sermão do medo, a vozinha trémula que habita o fundo de todas as almas: «Um salto no escuro... é sempre um salto no escuro...»
 
Mas eu gostava de citar a Maria do Mar, quando ela escreve:


Mais vale um dia sermos
a falha desastrosa
de uma aventura excessiva e perigosa,
do que sermos o menos
de tudo o mais que pudéramos ser.

 
Não deixa de ser um facto. Teremos sempre um futuro na medida da nossa coragem.

Maria do Mar II

Fragmento 172


Notas para a Maria do Mar nas margens de um capítulo da Crítica da Razão Pura de Kant
 
(«Primeira Secção - Das ideias em geral»)
 
 
Eis o que está anotado, para além dos sublinhados, das chavetas, das pequenas cruzes que marcam a intensidade de uma identificação ou dos pontos de exclamação que assinalam a alegria dos encontros: 

 
 
Finalmente a linguagem!
 
MENTE           PALAVRA
INFINITO              FINITO
 
Uma poética - Literalidade -
uma defesa da literalidade é uma defesa do significado,
da verdade e do valor intrínseco das palavras.
Maria do Mar.

 
 
«Apesar da grande riqueza das nossas línguas, muitas vezes o pensador vê-se em apuros para encontrar a expressão rigorosa adequada ao seu conceito, sem a qual não pode fazer-se compreender bem, nem pelos outros, nem por si mesmo.»

Estão aqui duas pistas para o mundo de Kant, superficialmente contraditórias. Em primeiro lugar, há uma pista que nos remete para o pressuposto de que o pensamento é uma actividade separada da gramática, e, em segundo lugar, há uma outra pista que nos diz que, se nos valemos de «expressões frouxas» ou «aproximadas», isto é, «não-rigorosas», ficaremos por ser compreendidos... até por nós mesmos...

Neste último ponto não andamos longe das novas terapias que colocam na higiene crítica da expressão verbal do pensamento o foco de um treino para a sanidade mental. Quase todos sabemos como a adopção expressiva de uma ideia incauta nos pode minar, ainda que de um modo impercetível, mas inexorável. Uma opinião rápida e demasiado intensa pode ter o mesmo efeito sobre um espírito pouco acautelado que um vírus sobre um sistema imunitário recentemente debilitado por uma emoção forte.

Mas este não é o ponto principal de Kant, obviamente. O seu delicioso «pensador em apuros» sabe muito bem que a um conceito não corresponde propriamente uma palavra. Como é que se lê Kant, ou qualquer outro grande filósofo?

Pega-se num caderninho de significados em branco, daqueles que usamos para memorizar vocabulário quando estamos a aprender uma nova língua, e vamos registando, termo a termo, expressão a expressão, conceito a conceito, o sentido que o autor lhes dá, até atingirmos qualquer coisa como uma «visão panorâmica» desse sentido. Aliás, é a esta prática muito específica que corresponde o significado literal da expressão de Deleuze, «qualquer filósofo fala numa língua estrangeira, ainda que dentro da sua própria língua». E é exactamente assim.

Naturalmente, Kant prossegue, com o seu moralismo peculiar:

«Forjar palavras novas é pretender legislar sobre as línguas, o que raramente é bem sucedido e, antes de recorrermos a esse meio extremo, é aconselhável tentar encontrar esse conceito numa língua morta e erudita e, simultameamente, a sua expressão adequada; e, se o antigo uso de tal expressão se tornou incerto, por descuido dos seus autores, é preferível consolidar o significado que lhe era próprio (embora persista a dúvida sobre o sentido que, em rigor, se lhe atribuía), a prejudicar o nosso propósito, tornando-nos incompreensíveis.»

O objectivo de Kant, neste capítulo, é extirpar a palavra «ideia» de uma miríade de sentidos em que é usada na linguagem comum, e mesmo filosófica. É sempre de desconfiar quando Kant aplica o epíteto de «sublime» a um outro filósofo. Ele pega nas ideias de Platão (com alguma ironia e humor, portanto), para começar a desenhar o seu conceito próprio de «ideia», pedindo aos leitores «que tomem sob a sua protecção a palavra ideia no seu sentido primitivo, para que doravante não se confunda com as outras palavras pelas quais é hábito designar toda a espécie de representações, sem nenhuma ordem precisa e com grande prejuízo da ciência.»

Ora, o que interessa a Maria do Mar, e o que tornou a passagem tão empolgante para ela, apesar de partilhar, com Kant, a mesma busca de exactidão, quer dizer, aquilo que fez vibrar uma corda muito forte no interior da Maria do Mar ao ponto de registar o seu nome nas margens de semelhante capítulo foi precisamente a via oposta à de Kant, e logo de início renegada, isto é, «o meio extremo» de «forjar palavras» - a invenção de palavras.

O problema é quase o mesmo, este que se coloca na linguagem ou na fala ou na articulação de um filósofo ou de um poeta - é um problema de rigor. Mas para o poeta há não só o rigor que se exige a esse movimento alucinado, demasiado rápido, das corridas no deserto ou das paragens e das ante-esperas sem nome no vazio - o pensamento - como há uma outra exactidão que se busca até à exaustão e que consiste em fazer das frases uma outra pele, um outro ajustamento para os corpos das sensações únicas, infinitas, que moldam o tempo das almas. É preciso para uma sensação, sim, uma palavra exacta que não seja deturpada e é preciso que ela tenha um ritmo exacto, uma cor exacta, um timbre exacto, uma melodia exacta, uma musicalidade rigorosa. Essas palavras e frases têm de ser ao mesmo tempo corpo e alma, isto é, rigorosas em duas direcções simultaneamente.

E de facto «meio extremo» foi a expressão exacta de Kant que incendiou aqui a Maria do Mar.  

Sobre a dificuldade em respirar

Sonho CLV

 
Depois de tantos anos, regressava a casa, mas tinha muita dificuldade em estacionar.
 
A mãe não sorria e dava-me um lugar na mesa onde era impossível desviar o olhar do seu rosto contrariado.
 
O pai não era tão antipático, mas dizia:
 
«Limpaste bem as solas dos sapatos? Parece-me que deixaste pegadas no nosso chão de mármore.»
 
Sentia um peso no peito que era difícil de sustentar e, ao mesmo tempo, como se um torniquete me estrangulasse a garganta.
 
Era difícil respirar.
 

Nuno Maria 2015




Efeito boomerang

Fragmento 172


De vez em quando, acontece que olhamos para alguém como se fosse a primeira vez.
 
Aquela pessoa... o que é que ela traz consigo agora, que nunca antes se mostrou?
 
Outras vezes, são os outros que nos olham como se fosse a primeira vez.
 
Pessoas que se cruzam, que trabalham connosco, mais ou menos anódinas, mais ou menos desconhecidas.
 
Discretamente, olham-nos como se nos quisessem arrancar com os olhos o que trazemos de não-dito e secreto na alma, o que nos transforma.
 
E nós conhecemos a subtileza e o fascínio de uma tal investigação, pelo número de vezes que nos dedicámos a ela.
 
Se os nossos olhos se tocam, os do outro rapidamente se desviam, como se tivessem sido apanhados numa tarefa interdita.
 
É um brilho na pele? Um toque no riso? Um humor no olhar? Um jeito nos cabelos?
 
É a maneira como o corpo se põe, se acomoda na cadeira, ou nos pés?
 
Que acontecimento secreto traz o corpo à flor da pele?
 
Uma nova paixão? Um novo encontro? Uma nova ideia? A alegria imensa e incontida que sempre acompanha o fim de um velho preconceito ou de um poema?
 
E quando damos conta que os outros nos olham assim, é curioso, damos por nós a pensar - «Mas o que é que me estará agora a acontecer?»
 
O desconhecido em nós salta-nos do corpo e é devolvido em cheio pelo olhar em espelho do outro. 


Maria do Mar I

Fragmento 171


Há muitos anos atrás, talvez dez, ou nove, não sei bem, escrevi nas costas de uma ficha sobre figuras rítmicas a seguinte nota: «Maria do Mar - Das ideias em geral - Crítica da Razão Pura - p. 308 - Poética».
 
Agora, como estou precisamente a trabalhar num dos livros da Maria do Mar, decidi-me a investigar essa nota.
 
O receio era tanto, passados todos estes anos, de que o sentido da nota se revelasse completamente opaco, que andei a inventar muitas coisas para fazer, em vez de investigar a nota.
 
Escrevi três sonhos e ainda uma pequena crónica e depois fiquei, durante cerca de uma hora, a olhar para o computador.
 
Comecei a pensar: «Já é tarde. Sinto-me desanimada. Já passou muito tempo. Não tenho forças para ir ver a nota.»
 
A Crítica da Razão Pura do Kant, por causa desta nota que estava pendurada na parede com fita cola, ao lado da escrivaninha, já desde o final de Julho que aguardava em cima da cauda do piano, em posição de destaque.
 
Felizmente, um outro lado de mim decidiu falar: «Toma o teu tempo, mas não desistas. A noite ainda está longe - e tu já dormiste a sesta... Olha para o ar o tempo que quiseres, antes de ires buscar o Kant, mas dispõe-te pelo menos a ir buscá-lo.»
 
Mais uma vez, e curiosamente, a boa vontade funcionou, ao contrário da força de vontade.
 
Pude então maravilhar-me com o conteúdo da nota, que surgiu brilhantemente intacto, passado tanto tempo, como uma mensagem lançada ao mar dentro de uma garrafa de água.
 


Sexo por sexo... e a prova da realidade.

Sonho CLII
Uma vez que o professor se tinha esquecido das horas, a lição de música prolongava-se.
A Maria do Mar dizia, olhando para o relógio:
«Professor, já está na hora.»
Mas o professor desejava que terminassem a escrita de um coral que se estava a tornar empolgante, por causa de uns saltos atípicos na voz do tenor.
Antes de terminar a aula, chegava a mulher do professor com uma amiga e pedia ajuda para mudar os móveis da casa.
O professor era Biagio Yamaguti.
A casa era um velho quinto andar sem elevador e com umas escadas de madeira bastante empenadas.
Quando a Maria do Mar estava a descer as escadas com a sua cúmplice - uma mulata de aspecto muito agradável -, ouviu lá em cima Biagio gritar bem alto:
«Tenho de ir comprar cigarros!»
E a Maria do Mar sentiu no peito uma alegria galopante, ao ouvi-lo descer as escadas.
Biagio rapidamente as apanhou e, como sabia que a Maria do Mar era muito difícil de conquistar, começou a beijar a sua cúmplice.
Mesmo não sendo uma cena propriamente atraente, a Maria do Mar estava com uma dor de estômago terrível, semelhante àquelas que temos nas descolagens dos aviões, por causa da excitação que aquilo lhe causava.
Biagio Yamaguti era um desses raríssimos homens que lhe inspirava um desejo sem reservas, ao ponto de querer despir-se num ápice e atirar a roupa toda para o chão.
«Como é que se pode desejar tão intensamente uma coisa nem por isso assim tão boa?»
Questionava-se a Maria do Mar.
Já estavam encostados a um muro da estrada e Biagio continuava a beijar a sua cúmplice, quando passou um bando de raparigas que, pelas risadas, todas se tinham deitado com ele.
«Aproveita, aproveita!...» Cantarolavam as raparigas. «Esse, esse... Nem queiras saber!...»
Mas a Maria do Mar não podia deixar de olhar para tudo aquilo com a tristeza antecipada de conhecer por experiência própria o sabor da amargura posterior.
Rudemente comparado, era como comer uma taça inteira de mousse de chocolate e ficar depois com uma valente dor de barriga.
- Mas claro!... - pensava a Maria do Mar - Há sempre quem tenha o estômago de um verdadeiro lagarto pré-histórico!...
Aliás calculamos, com o auxílio dessa insana e desmesurada faculdade da fantasia selvagem, que o estômago desses lagartos seja das coisas mais resistentes que a evolução da biologia animal alguma vez na Terra produziu.

Sarrasinoso*

Fragmento 170
 
Agarrado à gravatinha, como se a uma pilinha (mas de um modo vagamente delicodoce), o nosso Primeiro Ministro dá cor à capa do livro com que o badalado título «Somos o que escolhemos ser» atafulha as montras e os escaparates de tantas livrarias portuguesas.
 
Parece ficção de mau gosto, mas não é. Como tantas vezes costuma ser comum na publicidade, na propaganda e noutras estratégias de marketing, mais uma vez nos impingem pirosas e ofensivas barbaridades como se fossem alegres evidências do senso-comum.
 
Assim, ao contrário do que acontece com toda essa imensa zona involuntária da nossa identidade, ou personalidade, ou singularidade, como lhe queiram chamar, numa simples frase se enaltece o imenso poder da vontade pessoal sobre a vida e o destino.
 
O nosso brilhante Primeiro Ministro que vá vender a sua moral aos judeus gaseados nos campos de concentração alemães, às meninas casadas à força no Afeganistão, no Sudão Sul e em tantos outros países do mundo, aos refugiados afogados no Mediterrâneo, a quem trabalha a troco de uma côdea de pão, às populações encurraladas no meio de conflitos armados e às meninas Yazidi que agora mesmo no ano de 2015 estão a ser vendidas como escravas na Síria.
 
Quero colocar apenas uma pergunta.
 
Como é possível que tantos milhões de pessoas (nós, a população portuguesa) possam ser governados por inteligências tão reduzidas?
 
 

*A palavra «sarrasinoso» não existe. Certos elementos da ala feminina da minha família, pela linha materna, que a propósito de qualquer pequeno incidente sacavam de um poema de Camões, Pessoa ou Sá-Carneiro, o qual, fosse no café, na esplanada, ou num corredor de supermercado, declamavam com as mais dramáticas e assustadoras inflexões de voz, tinham o hábito de inventar palavras para as mais variadas circunstâncias. «Sarrasinoso» era aplicado a comentários de agreste maledicência, o que me convenceu, desde tenra idade, que a palavra seria composta a partir de uma mistura de «sarro», com «resina» (sujo como sarro, peganhento como a resina). Isto é, quanto mais agreste, quanto mais maldoso, quanto mais ranhoso, enfim, quanto mais mal-cheiroso - mais «sarrasinoso».
 

Como é que, de tanto, pode sobrar tão pouco?

Sonho CLI


A meio da noite, ao acordar de um sonho, pensei: «Que belo sonho! Vou escrevê-lo!»
 
Não valia a pena pegar imediatamente na caneta, pois era um sonho absolutamente inesquecível.
 
No dia seguinte, empenhei-me animadamente a pintar as grades da varanda, tomar um duche e fazer uma tarte de limão merengada para o almoço dos tios.
 
Foi só em casa dos tios, ao ouvir «O Anjo do Selo», de Rodion Schedrin, que me lembrei que houvera qualquer coisa empolgante, no meu sono.
 
Mas o quê?
 
Puxei, puxei... e, com um esforço notável, consegui obter duas palavras:
 
«Coke» (de Coca-Cola). 
 
E «Côcô-ri-cô».
 
(...)
 
Por coisas como esta é que venho a acreditar que tenho um malicioso génio interior cujo importante propósito me parece unicamente consistir em pregar sofisticadas partidas e assim poder divertir-se supremamente às minhas custas.
 

Britten - Rejoice in the Lamb op. 30

Fragmento 169


Para todos os gatos: 
a passagem sobre o gato Jeoffry,
a que Britten dedica um solo de soprano,
com algum humor (felino) - subtil que baste.


Christopher Smart (1722-1771) é o autor de Jubilate Agno, o poema a partir do qual Britten compôs a cantata em epígrafe.
 
Jubilate Agno glorifica Deus e o Cordeiro ao longo de cento e vinte sete versos - sete dos quais começados pela palavra «let», quarenta e quatro pela palavra «for», e, destes últimos, doze que são finalizados pela palavra «like». 
 
Esta repetição mecânica destila uma obsessiva luz maquínica sobre todo o poema e produz um imediato efeito de estranheza - mais ou menos como se encontrássemos uma linha de produção em série no meio de uma floresta de eucaliptos.
 
Por outro lado, não deixa de ser curiosa e absolutamente idiossincrática a agilidade com que Cristopher Smart passa dos exemplos clássicos para o seu gato Jeoffry, para um rato (que é «uma criatura de grande valor pessoal»), para a linguagem das flores («a poesia de Cristo») e para um conjunto de instrumentos musicais, passando por quatro letras do alfabeto - HKLM.
 
Cristopher Smart foi julgado por uma «Comissão de Loucura» e foi admitido como «doente curável» no St Luke´s Hospital for Lunatics, em 6 de Maio de 1757.
 
Foi aí que escreveu Jubilate Agno.
 
Mais tarde passou de «curável» a «incurável» e foi transferido para o Asilo de Mr. Potter, por razões monetárias.
 
Porém, certos factos sugerem que a admissão de Smart num asilo para loucos não se deveu tanto à deterioração da sua saúde mental como ao seu talento incorrigível para contrair dívidas impossíveis de pagar.
 
Apesar de ter saído do asilo, Smart acabou por morrer em 20 de Maio de 1771, numa prisão para devedores.
 

 
 
 
 
For I will consider my cat Jeoffry.
For he is the servant of the living God.
Duly and daily serving him.
For at the first glance
Of the glory of God in the East
He worships in his way.
For this is done by wreathing his body
Seven times round with elegant quickness.
For he knows that God is his saviour.
For God has bless'd him
In the variety of his movements.
For there is nothing sweeter
Than his peace when at rest.
For I am possessed of a cat,
Surpassing in beauty,
From whom I take occasion
To bless Almighty God.


 
 

Sobre um elevador

Sonho CXLIX
 
 
Estava morto por chegar a casa.
 
Ao abrir a porta do elevador, reparei que entrava no átrio do prédio uma velha senhora caminhando com alguma dificuldade apoiada no braço da filha, que também já não era jovem.
 
Respirei fundo e dispus-me a esperar pelas duas senhoras, dizendo de mim para mim, ao sentir-me tão subliminarmente contrariado:
 
«Como a nossa bondade é pequena!...»
 
Quando as duas senhoras entraram no elevador, agradecendo muito, perguntei-lhes para que andar é que iam.
 
Foi então que, sem querer, toquei num botão que tinha um símbolo ilegível, ao invés de tocar no número que me tinham dito.
 
Só pensava nas inúmeras coisas que tinha para fazer, quando chegasse a casa.
 
Mas pedi imensa desculpa ao dar pelo erro, enquanto pensava, para os meus botões:
 
«Quanto mais depressa, mais devagar.»
 
Contudo, o elevador não subiu para nenhum andar, em consequência do meu erro.
 
O elevador disparou como uma carruagem de montanha russa a deslizar sobre dois carris que permitiam uma vista panorâmica sobre a cidade de Lisboa e os arredores de Cascais.
 
«Mas porque é que os nossos elevadores haveriam de ter esta vertente turística?...»
 
Pensava eu - concluindo que afinal devia ser por isso que tínhamos pago tanto por eles.
 
«Peço imensa desculpa...» - Dizia eu às duas senhoras. - «Faço-vos perder tempo... e apanhar sol... as minhas sinceras desculpas... se eu soubesse...»
 
Elas diziam que não, que não me preocupasse tanto e não me desculpasse - porque a toda a gente acontece errar, ora essa!..., e que o passeio era até muitíssimo agradável e além disso qualquer pessoa poderia ter um descuido ao carregar num número tão elevado de botões...
 
Agora tínhamos de ir até ao Cabo da Roca, passando pela Duna Crismina e pela Malveira da Serra.
 
O nosso elevador era um espécie de móvel multifunções e  por vezes íamos como que numa pequena carruagem sobre carris, enquanto noutras íamos pelo ar pendurados num cabo como nos teleféricos.
 
Eu não via já como chegar a casa a tempo de fazer tudo o que ainda me faltava fazer.
 
Para cúmulo do desastre, às duas por três estávamos a atravessar a praia do Guincho mas, como os carris estavam sobre as águas e a maré subia velozmente com o mar agreste e revolto, tivemos de nos agarrar com força à base dos bancos para não sermos arrastados pelas ondas.
 
«Que irresponsáveis, os promotores deste passeio turístico!...» - Pensava eu, guardando para mim estas considerações de modo a não apoquentar ainda mais as duas pobres senhoras.
 
Nesse momento já não fazia sentido pedir qualquer espécie de desculpas.
 
Com o impacto de uma grande onda a minha mochila azul voou e fiquei a vê-la flutuar na espuma do mar revolto, enquanto ponderava qual a melhor de duas más opções -
ou lançar-me às águas, ou aguardar em longas filas de espera de modo a substituir o cartão de cidadão, a carta de condução, o livrete do carro, os cartões de crédito, etc.

Essa mochila tinha escrito em letras pretas: «À procura da liberdade.»
 
Acabei por me lançar à água e, com muito esforço e risco da própria vida, reaver a mochila azul.
 
Já não esperava animadamente chegar a casa, quanto mais realizar as tarefas planeadas.
 
 

Nuno Maria
 

 

Fragmento 168




Máquina de resistência.

Corpo contra a morte.

A arte.




Fragmento 167

 
 
 
 






 
Pássaro - Voa!
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
*Fotografia do bailarino Diogo Oliveira


Órfãos do infinito

Fragmento 17


Não pertenço a nenhum grupo, a nenhuma religião.
 
Tenho pena.
 
Poderia talvez amar um ritual como uma planta que, se fosse capaz de amar, amaria a sua raiz.
 
Mas não pertenço a nada. Estou sempre de passagem.
 
Acredito porém que preciso de criar qualquer coisa, em vez de religião, de outra forma morrerei como todos os que morrem aos poucos.
 
Preciso de uma nova visão, preciso de um novo pão.
 
Não desejo que a morte seja apenas uma comédia com pormenores grotescos, hilariantes e trágicos.
 
Sem Deus, ainda que vivamos em abundância, ficamos sempre muito magros ou muito gordos, passamos fome ou comemos até à náusea, até nos envenenarmos e deformarmos a nós próprios, como que inchados por maus tratos.
 
Demasiado pobres, viciados em miséria, ou demasiado ricos, como ladrões inconscientes, satisfeitos e vaidosos, trabalhamos muito até já não pensar, como escravos púdicos e embriagados desse prazer de cumprir um dever.
 
Cada um, ébrio de si, pode então escolher o íntimo prazer com que esquecer e morrer.
 
Baralhos de cartas, substâncias que se engolem, bebem, injectam ou inalam, sexo em série, objectos de luxo, paixões amorosas, carreiras ou famílias instaladas, e até o que parece bom não deixa de ser um vício, diminutivo e por fim doloroso e fatal como uma doença, enquanto andamos desta maneira desvairados, perdidos de deus - os órfãos do infinito.