Quartos Alugados, de Alexandre Andrade

Fragmento 177
 
 
Um grande escritor escreve quase sempre para daí a um século. Ele lança uma seta que será apanhada daí a muitas décadas, provavelmente por um outro escritor que a lançará de novo, e assim sucessivamente. A ideia não é minha, é de Deleuze, mas traduz uma circunstância real que está no âmago da nossa dificuldade em julgar um contemporâneo. E não apenas porque qualquer coisa de novo que se produza agora, no presente, tenha a virtude de passar invisível, porque é uma novidade. Não penso que o principal critério para julgar arte seja a novidade, até porque essa novidade, precisamente, é inescapável em qualquer produção original. É neste ponto que me separo do escopo geral da ideia em Deleuze. O juízo da posteridade só se verificará quando estivermos todos mortos, e a ideia não é simpática, nem para os egotistas, nem para os caçadores de fama, é um facto. Mas a ideia também não deixa de ser delirante e divertida para uma certa espécie de humoristas (rara, e geralmente incompreendida) que primam por não se renderem a nenhuma teoria definitiva sobre o sentido da sua própria vida.

Superado o pedido de benevolência, falemos de Alexandre Andrade.
 
Existem quatro coisas que o distinguem. Um português puríssimo que não se rende a uma tentação grosseira de inovar por inovar, ou de ser diferente por ser diferente. Uma cultura real e assombrosa, que não deriva da vaidade, mas de uma viva curiosidade e de uma atenção vital às coisas humanas. Um humor que está para além do irreverente e que funciona como uma máquina de desmontar lugares-comuns (como uma máquina de abstracção, portanto). Uma percepção subtil.
 
Lembro-me, há duas décadas atrás, de um minúsculo pormenor num romance dactilografado do Alexandre, que me acompanhou toda a vida. Alguém (não sei se Vera), tinha o hábito de colocar um fio de cabelo entre o puxador e a ombreira da porta, para garantir que a sua intimidade não teria sido violada.
 
Não sei exactamente porque cito este pormenor. Talvez porque nele se condensa o mesmo tipo de surpresa e a mesma dimensão de subtileza que encontro em frases como: «Péricles deixou-se ir, imaginando que regressava a uma cidade repleta de enigmas mas nunca cruel o suficiente para sonegar as soluções desses enigmas àquele que se dispusesse a encontrá-las, munido apenas das suas mãos nuas, do seu engenho humano, do seu corpo vertical estremecido muito ao de leve pela pulsação.»
 
Está no limite do sensível, sim, mas somos «corpos verticais» estremecidos «muito ao de leve pela pulsação.» E é verdade que a respiração dos outros (e a nossa) marca a passagem do tempo «como um metrónomo».
 
Nas séries de quartos alugados que desfilam ao longo dos contos que compõem o livro, muita gente, com nomes incompossíveis (Péricles, Mónica, Ágata, Renato, Inge, Ole...), e em geral nómadas (estudantes, gente tão fora das sua terra que chega a alugar quartos em cidades imaginárias, donos de nada, desocupados ou entre um estado e outro estado, ainda por definir), uma gente a quem o Alexandre dedica uma atenção vital, compassiva, rigorosa, amorosa, por vezes satírica, esta gente compõe uma pluralidade alegre da qual se destaca uma certeza luminosa e arejada - a de que uma pessoa estará sempre para além de uma descrição.
 
A máquina do humor que serve, a meu ver, este propósito, é complexa e daria pano para mangas desmontá-la. Há sempre uma viragem, uma curva irreverente em cada um dos contos, que lança no ar esta certeza como um foguetão. Pode ser a figura oculta e enigmática de uma Mónica a desvendar por um detective improvisado, uma Mónica que de súbito entra no apartamento do próprio detective e que desfia em alíneas, e na primeira pessoa, todos os seus mistérios, ou pode ser a destinatária de uma extravagante declaração de amor («O Ramo Dourado», de Fraser, copiado à mão pelo amado) que passa abruptamente de uma hipótese de explicação transcendente para uma lista trivial das preocupações quotidianas, como o estado da canalização ou da rede eléctrica do apartamento.
 
As passagens são sempre incrivelmente rápidas, abruptas, mas paradoxalmente naturais.
 
Em suma, respira-se.