Crianças 10

(com a Carlota, de dez anos)



- Estás a ver, Carlota, como esta música é fácil e divertida?

- Bem vejo, Professora! Por isso é que me sinto tão estúpida, porque não consigo tocá-la!

- Que disparate! É preciso praticar um pouco. Queres fazer a colheita, sem plantar as sementes?

- Professora, os esquilos também enterram as bolotas e depois esquecem-se delas e às vezes nasce uma árvore.

O tom



«Francisca,

Talvez um dia alguém se admire e se pergunte porque é que nós que vivemos na mesma casa escrevemos cartas uma à outra, como se continentes e mares nos separassem. Não somos como aqueles apaixonados que por timidez ou invalidez ou mero pudor enviam em sua representação o pior delegado de si mesmos - uma carta de amor. Nós que dormimos a sesta à sombra da mesma árvore, lemos os mesmos livros reclinadas no mesmo sofá e jantamos nesta casa sem electricidade à luz das mesmas velas podemos conceder-nos o extravagante privilégio de deixar cartas sobre a cama uma da outra como quem deixa coroas de flores e bilhetinhos com o mapa dos caminhos por onde iremos passear no dia seguinte, pela beira dos rios. Não é verdade? Não concordas que há encontros que é muito mais agradável ter assim - ou que só podem mesmo ter-se assim? Nada mais vão do que uma conversa. Nada mais desnecessário que uma conversa, que nos distrai infinitamente de tudo o que nos rodeia por dentro e por fora só para no fim nos deixar exaustos e exauridos e drenados como pântanos sombrios e confusos... Que bom que é fazer amor sem palavras e fruir o sublime sem arrobos - em silêncio!... Pelo menos aqui nestes papéis as palavras têm a vantagem de chegar no meio de um grande silêncio, pois não são ditas, são só lidas, e é como se viessem despidas. As nossas cartas são só mais um modo de fazer amor, não concordas? Estas palavras são como os nossos corpos debaixo das roupas. Trazem consigo aquele mesmo calor, aquela lisura e aquela embriaguez da pele. Será o silêncio que lhes dá um som de alma, um som de coração, tal como uma sensação interior, toda virada para dentro - um som virtual que na verdade não vibra mas vem com a intensidade própria de ser só imaginado? A pele também tem a sua sinfonia própria e íntima - selada. Francisca, nisto não há companhia melhor que a tua, quando não me vens dizer: «Que lindo rio!...» - quando contemplamos o rio. Pelo menos tu não interrompes com comentários inúteis o nosso êxtase comum, como se fosses um turista que entrasse numa igreja e tocasse no ombro do crente ajoelhado para lhe dizer como é magnífica a talha dourada do altar!...

Hoje o nosso dia foi tão calmo e luminoso, foi tão bom colher as amoras maduras e prontas à beira do rio - e tu sabes como eu amo o Verão e fazer compotas e ainda mais comê-las, mas durante os nossos silêncios continuei sempre a pensar no que já te tinha escrito sobre a experiência de escrever em espartilhos clássicos, com métrica escandida e versos rimados, e da surpresa que isso me causou. Sabes, Francisca, acredito que de um modo perfeitamente involuntário acabei por criar um novo género. Não se trata de uma afirmação imodesta porque, na verdade, a sê-lo, será um género muito pouco nobre e muito pouco apreciado. Imagina, como inverso de «prosa poética», uma «poesia prosaica». Deve ter sido este o resultado de um projecto frustrado de há muitos anos atrás, quando imaginei escrever um pequeno livro numa prosa disfarçada e que na verdade seria toda feita com a métrica rigorosa e espiralínea da terza rima de Dante, mas em texto corrido, aparentemente livre. Não consegui concretizá-lo, mas ainda não desisti deste projecto. Porém, é caso para exclamar - «Como os nossos desejos seguem caminhos enviesados!...»

Talvez um pouco por tudo isto cada vez mais me convença que o tom prosódico é como uma posição do corpo. Nunca, por maior que seja a disciplina ou virtuosa que seja a torção, chegaremos a dominá-lo de uma forma inteiramente consciente. Porque a consciência é como uma dobra - e até mesmo um espelho, até mesmo o olhar de um outro, até mesmo um filme, só nos dão o corpo plano a plano (soluço a soluço) na série especialmente involuntária dos seus múltiplos, infinitesimais elementos. Por mais rigoroso que seja o juízo do próprio, ele será sempre um pouco frouxo, não concordas? Como os olhos que, do próprio rosto, ou captam a ponta do nariz, ou sempre a posição um pouco preparada no espelho. Sei que não concordas, mas não acredito que nada nos salve. Nem uma migalha de justiça, nem um grão de necessidade. Estamos em profundo desacordo, é certo, mas, como sabes, para além do álcool, ainda não descobri, como tu, a imanência. Até mesmo os melhores contemporâneos, os mais lúcidos, os mais cultivados ou agraciados por uma viva inteligência sofrem desta deformação da visão que advém de um excesso de proximidade e que resulta numa outra frouxidão do juízo, para o bem ou para o mal.

Não sentes que seremos sempre como aqueles náufragos que escrevem uma mensagem e que a lançam à sorte numa garrafa de vidro?

Pode ser que um grande peixe venha a engoli-la ou que seja descoberta cento e setenta e cinco anos mais tarde, quando os nossos ossos estiverem um pouco desgastados pela terra e, aqui e ali, roídos pelos bichos.

Nessa altura talvez enfeitem a nossa caveira com uns óculos escuros e um belo chapéu cómico - é tudo o que se pode dizer.

Vou-me deitar, que o sono e a cama lavada são tão bons.

Amo-te minha querida Francisca mais ainda que o sol de hoje à tarde sobre as amoreiras.

M.»



(Cartas de Maria do Mar para Francisca M., 1988-1999)

Sobre a libertação de um cavalo

Sonho CLXXIX



Fazíamos a travessia de um rio africano quando o cavalo saltou para a margem, escapando da sua jaula no ferryboat.

Que salto incrível!

Não fora um salto. Fora um voo sem asas que lhe permitira de um golpe só transpor toda a larga bacia do rio.

Impossível capturá-lo.

O mecanismo da curiosidade

Fragmento 192



Por vezes, somos agraciados com um acontecimento raro - uma abstracção em acto.

A abstracção é em geral uma tarefa da imaginação, um acto de pensamento, mas, de um modo menos comum, pode acontecer que uma abstracção choque connosco como um Ready-Made.

Foi o que aconteceu num desses Domingos em que o tio J. G. me convidou para ouvir música na sua aparelhagem, inteiramente construída e projectada por si mesmo (aliás, nunca terminada, mas em permanente construção).

Fui porém imediatamente informada, ainda antes do almoço, que teria acontecido um pequeno desastre que obrigaria a uma breve excursão à oficina e em que as minhas duas mãos representariam uma mais-valia inestimável.

Mas que desastre?

Ah, seria muito complicado explicar!...

Assim pegámos num dos cinco amplificadores (pesadíssimo) daquela gigantesca aparelhagem de seis tremendas colunas e que ocupa toda a sala.

Mas eis que no interior daquela «caixa» alguma coisa chocalha.

Caramba, o que se terá soltado?

Aberta a pequena e pesadíssima caixa, fica exposto o emaranhado de fios coloridos. Um labirinto de percursos em que nitidamente se mostra uma rede bem precisa de saídas e entradas.

Mas o que aconteceu?

Ah, isto é muito mais complicado... Muito mais complicado do que eu pensava... Vamos ver... Vamos ver se aqui tem corrente. Não... Não é o condensador... Mas o que será?... Ah... Mas aqui derreteu... E aqui... Ah... Vamos para casa, estão aqui muitas horas de trabalho. Muitas horas, muitas horas.

Mas como? Como é que isto se avariou?

Foi uma válvula nova que experimentei. Explodiu. Mas é muito complicado explicar.

Mas não foi aquela válvula do exército Nazi, de 1930, aquela relíquia que te custou uma fortuna?

Não, não. Ah, que chatice. Vamos ouvir música. Não será a mesma coisa, mas paciência.

E eis o mecanismo da curiosidade, numa perfeita abstracção do seu funcionamento: 

ACONTECIMENTO - O QUE SE PASSOU?
PISTAS
AS PISTAS ERAM FALSAS
REALIDADE
A REALIDADE MOSTRA-SE
MAS É IMPOSSÍVEL DE INTERPRETAR OU SIMPLESMENTE ILEGÍVEL


Não há dúvida. Há qualquer coisa de maquínico em todas as formas de desejo.

Morrem como tordos - as pessoas

Sonho CLXXVIII


Senti-me muito doente e, por isso, o meu tio levou-me ao médico.

Apanhámos um avião, porque o hospital era nas ilhas.

«Que viagem tão longa! Que bilhete tão caro!»

Durante o percurso carpi-me, pois comecei a sentir-me bastante melhor.

Talvez não se justificasse ir ao médico.

Desde criança que me acontecia sofrer deste síndroma curioso que consiste em melhorar subitamente ante a visita do médico.

Durante o voo senti-me tão bem, tão aliviado e, ao mesmo tempo, tão profundamente culpado!

Mas afinal tinha uma infecção grave no ouvido esquerdo que era preciso tratar com antibióticos.

Não tinha sido assim um dinheiro tão mal gasto.

«Uma coisita destas, antigamente, e era um ar que se lhes dava.»

Morrem como tordos - as pessoas.

Sobre a escolha entre matar ou ser morto

Sonho CLXXVII



Estávamos em guerra e por isso a Francisca fugia com uma pequeníssima menina ao colo.

O pai da menina continuava a tocar violoncelo num pequeno quarto sem janela, de modo que a Francisca partiu sozinha.

«Não morremos com as bombas. Morreremos com o frio.» - Pensava a Francisca, procurando, com as mãos trémulas, os casacos.

Tudo o que conseguiu arranjar foi um blazer de Primavera para si e uma camisola de malha para a pequena, que tinha dois anos.

Com essas coisas nas mãos, desatou a correr.

Há muito tempo que Francisca não falava com os pais, e pensou se naquele momento não deveria ligar-lhes.

A Francisca abrigou-se na grande casa da sua avó, que estava vazia desde a sua morte.

«Teremos comida para quanto tempo?»

A Francisca conseguiu abrigar os seus dois gatos, mas sentia uma angústia extrema por eles.

«Estamos todos condenados.»

Tentaram entrar em casa quatro homens, e ela matou-os a todos, um por um.

Quando por fim chegaram os seus amigos, a Francisca disse:

«Matei quatro homens.»

Dois deles matara-os com um tiro no coração.

Os outros dois, enquanto subiam as escadas, do alto lançara-lhes uma coisa pesada sobre a cabeça e, enquanto estavam atordoados, trespassara-lhes o peito com uma velha lança que estava ao lado de uma armadura medieval.

A sua avó sempre gostara de antiguidades.

«Que fazemos agora com os corpos?»

A Francisca tinha dois revólveres em cada bolso, mas tinha as balas contadas.

Só conseguia lançar sete de cada vez, por isso as mãos não lhe podiam tremer.

«É melhor lançá-los pela janela.»

A Francisca só conseguia pensar em três coisas. Se todas as entradas e janelas estavam protegidas; no número de refeições que poderia confecionar com a comida que se encontrava na despensa; e na vantagem que seria possuir, em vez de um revólver, uma espingarda com vários cintos de munições.

A todos os que quisessem fazer-lhe mal, a Francisca matá-los-ia com uma bala no coração.

A sua mão não tremeria.

Os seus olhos não se fechariam.

Crianças 9

(com o Miguel, de nove anos)


- Agora vais praticar, um bocadinho, todos os dias, e daqui a oito dias, já sabes esta música.

- Quando é que é a próxima aula?

- Dia oito.

- Dia oito, daqui a oito dias. Ah!... Mas o que era mais giro era se HOJE fosse dia oito!...

- Hoje, dia oito, e daqui a oito dias, no dia oito?

(risos)

- E já agora, daqui a oito dias, oito horas, oito minutos e oito segundos, em dois mil oitocentos e oitenta e oito.

- Não. Oito mil oitocentos e oitenta e oito.

- Ah, pois claro. Oitocentos anos de esperança média de vida. Não se admite...

Sobre um Lobisomem

Sonho CLXXVI
 
 
A Maria do Mar tinha de retirar duas ou três coisas de casa, mas o homem que chamou para realizar esse serviço não percebeu as instruções.
 
Ele encaixotou todo o recheio da casa, enquanto a Maria do Mar lhe dizia:
 
«Espere, você não está a perceber. Eu não vou mudar de casa.»
 
A Maria do Mar ao ver o lixo que estava atrás dos móveis sentiu a necessidade imperiosa de pegar numa pá e numa vassoura, mas não chegou a fazê-lo, pois o homem que lhe prestava aquele serviço começou a transformar-se em lobisomem.
 
No meio do átrio, a Maria do Mar tapou-o com uma manta para que não fosse levado pelas autoridades.
 
«O que se passa consigo? Está a transformar-se em lobisomem?»
 
«Sim.» - respondeu o homem. - «E sofro muito.»
 
Porém, quando a transformação se completou, o homem ficou enorme e pegou-lhe ao colo como se fosse uma pluma.
 
«Não.» - disse-lhe a Maria do Mar. - «Lá por seres um lobisomem, não podes fazer tudo o que te apetece.»
 
Mas já tinha acontecido.
 
Sempre e em vez do amor, o desejo rápido e desértico da pele, como um pobre paliativo ardente para uma eterna falta de ternura. 

Maria do Mar III

Fragmento 191


«Descubro não sem surpresa que escrever debaixo de um espartilho clássico (uma ode, um soneto, uma canção), sob a obrigação dos sons escandidos, rimados e medidos, um por um, é exactamente como fazer surf, Francisca. Não que alguma vez tenha feito surf, tu sabes. Mas posso imaginar, a partir desta sensação de escrever sob a tirania de um ritmo mais ou menos previsível, o que é pôr-se de pé na prancha para correr sobre o mar com a onda. Porque tens aquele ritmo no centro do corpo, um ritmo abstracto e implacável que é como a força imutável do mar, um vazio para os sons obrigatoriamente coincidentes que é como o frio das águas geladas. Tens, como é que te hei-de dizer, esse meio, e essa oposição. Ao mesmo tempo uma via e um obstáculo. E depois há o desejo de uma força que te ultrapassa e que te combina, de pé em cima da prancha, com a força da onda. Um querer pôr-se de pé. Uma coisa tão forte que tem de vir à tona para surfar aquele ritmo escandido, como se fosse um sobrevoo. Enquanto a compões a frase avança extremamente devagar, sempre com aquela agrura da oposição aos meios naturais, aquele perigo, aquela incerteza, mas com uma pulsão própria. Quando a lês inteira porém a frase revela uma velocidade que estava escondida ou inacessível, uma intensidade que de repente é posta a nu. É como um meio de transporte poderoso, a desbravar o espaço do ritmo. Não és tu. É um vento que te sopra por trás, uma rajada que te segura de pé, numa linha que já lá estava e por onde por acaso parece que és tu que vais. E não deixa de ser curioso. Sempre, antes de alguma coisa acontecer, aquele vazio... aquele deserto... E aquela angústia. Igual para a palavra que encaixa no ritmo que a ela se opõe e igual para a palavra que se inventa, e que sai directamente da sensação, como um rebento. A incrível sensação do vazio - de um vazio total.»


(Correspondência de Maria do Mar com Francisca, 1988-1999)