Maria do Mar IV

Fragmento 155


«Desde os doze anos que vejo as luzes como Van Gogh as pinta. Antes dos doze anos, não me lembro. As linhas vivas e angustiadas que dançam em torno dos centros luminosos dos semáforos, dos candeeiros de rua e de todos os focos redondos que cintilam. No tempo de Van Gogh não havia semáforos, é certo. Mas eu vejo estas luzes do mesmo modo que ele via as outras que deixou pintadas, brilhando à solta pelas ruas. Desde os doze anos que penso: «Pintar é ver.» E muito mais tarde: «Ver é pensar.» Estes traços alucinados destacam-se quando olhamos as luzes fixamente, durante algum tempo, ou, pelo contrário - paradoxo... - quando as olhamos distraidamente, fixando genericamente o fundo sem as fixar, porque nesse caso o fundo que está atrás sobrepõe-se à frente, e as luzes começam a piscar. Tenho de investigar Van Gogh com alguma urgência. Tenho de fazê-lo urgentemente, antes que a morte me leve. Ler toda a sua correspondência. Conhecer palmo a palmo a sua vida. Olhar durante horas para os seus quadros e visitar as suas casas se conseguir reunir a coragem suficiente para viajar... Pois tenho a certeza que daí advirá... uma revelação.»


Van Gogh, Noite Estrelada (pormenor), 1889

Sobre o desejo de que um sonho não acabe

Sonho CLXXXVI



Finalmente chegara a hora de Francisca M. poder estar com Heinrich Hart, ao fim de tantos anos!...

Apesar de velho, ele continuava a magnetizá-la com a mesma intensidade.

Como ela amava aquela peculiar e eterna combinação de força e delicadeza que podia captar nos seus movimentos e no seu corpo, com toda a nitidez!...

Seria um tal emparelhamento entre feminilidade e virilidade, num  mesmo corpo, que a deixaria para sempre tão arrasada?

Ou era a forma como trocava os ditongos em «ão» por «am», como mordiscava o lábio inferior, o pensamento um pouco tortuoso, as atenções que lhe prodigalizava e o gozo e a marotice que se destilavam do seu olhar?

Certamente a Francisca M. haveria de esperar muitos anos antes de conseguir descobrir as palavras ou o conceito que descrevessem com exacta precisão a natureza real dessa magnética androginia, que se expressava em particular no movimento e na forma das mãos - finas, brancas, suaves, mas fortes e bem delineadas, como que marcadas a traço firme num desenho a carvão de Michelangelo.

Sentados lado a lado, ela podia sentir com perfeita nitidez a combinação destas duas forças opostas no corpo encostado ao seu, fino e elegante, vestido de linho branco.

A Francisca perguntava: «O que quer dizer WAS WIR?»

Mas não obtinha resposta.

«Dabliú dabliú.» - Insistia a Francisca, sentindo-se uma perfeita idiota.

Pois não há nada tão confrangedor como insistir em obter respostas de quem não no-las quer dar.

A Francisca ansiava por poder despir-lhe a camisa branca, botão a botão, e libertar-se a si de toda a parte de cima de um só golpe, camisola e roupa interior, para poder encostar o seu peito nu ao seu.

Sonhava com esse instante mágico em que se uniriam num beijo e ela poderia enfim fluir na embriaguez antecipada a tensão infinitamente suspensa do seu desejo.

«Ó sonho!... Não acabes ainda!...»

Mas o problema era o empregado de mesa, que não trazia a conta. E o Multibanco. E a prima Constantina. E o estacionamento do carro. A cómoda azul. O tapete persa. O relógio de corda. A leitura dos sete volumes de Proust. As circunstâncias. A vontade alheia. As intrigas. A maledicência. A inveja. A indiferença. O prazo de entrega da tese. As falsas teorias sobre a sexualidade dos poetas. O silêncio. A ausência. A rejeição. A distância quilométrica. A traição. O medo. A renúncia. 

Afinal, tudo se interpunha entre a Francisca e a consumação do seu amor.









Crianças 11

(Gaspar, de cinco anos)


- Aquela zona profunda da água, como era maravilhosa!... Eu adorei aquela zona profunda!... Aquela zona batipelágica...

- Gaspar (diz o pai), o mar tem muitas zonas. Nós aqui estamos na zona epipelágica. É a zona menos profunda. Depois existe a zona mesopelágica. Mais ou menos profunda. «Meso» quer dizer «meio». Depois tens uma zona mais profunda, a zona batipelágica, abaixo dos mil metros de profundidade.

- Ora (continua o Gaspar), naquela zona espidopelágica é que eu adorei estar!...

- Espidopelágica? (pergunto eu).

- Espumopelágica.

- Onde rebentam as ondas, a zona que está cheia de espuma?

- Não, essa é a zona espinhopelágica.

- Espinhopelágica?

- Não. Mebropelágica.

- Mebropelágica?

- Fedopelágica!

- O.K.!




Fragmento 154



Um discreto obrigada a Michelle Obama por ter tido pelo menos a coragem de não cobrir os cabelos na Arábia Saudita.


Janeiro de 2015