A flor do sal

Sonho CCXXVI


Fazíamos amor durante horas, mas, no final, estávamos mais sós do que antes.
 
Os nossos corpos tinham-se encontrado, mas não as almas, e, apesar do calor que nos corria por dentro, as nossas almas tinham mais frio.
 
Não deve ser por acaso que a vida dos santos e dos ascetas tantas vezes começa pelo excesso.
 
Cabe frequentemente aos que sucumbem a toda a ordem de vertigens virem a transformar-se nos mais sóbrios e reservados dos homens, nos ébrios de Deus que festejam com erva e água pura.

Colhem a preciosa e evanescente flor da frugalidade, como quem colhe a flor do sal. 

 
Listas

aqui
 

Sobre a culpa que se adquire com a intenção, mesmo sem as vantagens do delito

Sonho CCXXV


A Françoise M. descia com uma amiga pela rampa de um estacionamento subterrâneo até encontrar um grupo de chineses sentados em lonas, que estavam de guarda aos seus haveres.
 
Ali se tinha reunido muita gente, mas não havia automóveis.
 
Porque estariam todos ali?
 
Seria por causa das bombas?
 
Estariam em guerra?
 
Havia pessoas sentadas em cadeiras brancas de plástico, observando quem passava.
 
Alguns tinham trazido cobertores, outros tinham trazido caixotes de fruta e outros ainda tinham trazido móveis de casa.
 
Havia uma estante muito feia com uma jarra terrível e uma flor de plástico.
 
Meu Deus!... As coisas de que as pessoas precisam!...
 
Também havia um daqueles bares em forma de armário, cheio de garrafas.
 
A amiga de Françoise M. pegou num copo e serviu-se de uma garrafa de gin.
 
A Françoise pensou em fazer o mesmo, mas depois reflectiu.
 
Para a sua amiga era apenas um copo de gin, mas para si seria a ruína.
 
Mesmo estando em guerra e debaixo de um bombardeamento, não lhe parecia uma boa opção.
 
Disse:
 
- Adeus.
 
E subiu à superfície.
 
Lá em cima a Françoise encontrou por acaso a Narciso E. F. que fazia anos.
 
Trazia um bolo, mas, infelizmente, não havia nada com que pudessem comê-lo.
 
Nem pratos, nem guardanapos.
 
Era noite avançada, quase de madrugada, e a Françoise determinou-se a assaltar o Gambrinus para ir buscar copos e guardanapos.
 
Era inofensivo roubar ali três guardanapos de papel e uns pratos, eles tinham demasiadas coisas.
 
A porta estava apenas encostada e a Françoise entrou facilmente, mas esqueceu-se que era um ladrão e acendeu todas as luzes, para poder encontrar os pratos e os guardanapos.
 
De repente, ficou muito aflita.
 
O que estava a fazer?
 
Por que raio tinha acendido aquelas luzes todas?
 
Agora qualquer um podia vê-la, ainda por cima com aquele casaco branco e felpudo.
 
Sentiu passos a aproximarem-se.
 
Deixou cair os guardanapos no chão que estava molhado e os guardanapos desfizeram-se quase imediatamente, de modo que não foi possível apanhá-los.
 
Também não havia por ali pratos de plástico e, como a Françoise não queria roubar nada que pudesse fazer falta no restaurante, saiu de mãos a abanar.
 
O grupo de homens que vinha abrir o restaurante cruzou-se com ela, enquanto a Françoise corria o mais que podia.
 
- Já que me incriminei, não podia ao menos ter colhido as vantagens do delito?

A cegonha e a chaminé

Sonho CCXXIV

 
F. de Riverday estava na sala com a mãe e a avó, no topo de uma alta torre, num castelo.
 
Não que quisesse suicidar-se, mas, ao sentar-se no parapeito da varanda, desequilibrou-se e caiu.
 
Durante toda a queda maldisse a sua má sorte, pensando que ia morrer.
 
Por isso qual não foi o seu espanto quando, no final da queda, deu por si no topo de uma alta chaminé de tijolo semelhante àquelas que resistem ao abate das velhas fábricas e ficam plantadas no meio dos ermos.
 
Tais chaminés são iguais, na sua mágica inutilidade, a velhos dólmens.
 
F. de Riverday parecia uma cegonha sentada no topo de um poste.
 
Apesar de estar numa situação difícil, pelo menos não estava morta!...
 
Como poderia sair dali?
 
Quem poderia salvá-la?
 
Não é que a sua mãe quisesse suicidar-se - a sua mãe ainda menos que F. de Riverday, absolutamente!... - mas, ao sentar-se no parapeito da varanda, também ela se desequilibrou e caiu.
 
O caso de sua mãe foi de certa forma ainda mais extraordinário que o seu.
 
O seu pé enrolou-se numa corda e quando estava quase a bater com a cabeça contra o chão, ficou presa pelo pé.
 
A sua mãe portanto salvou-se.
 
A avó debruçou-se no parapeito da varanda, estarrecida.
 
Ela de todo é que não queria suicidar-se!...
 
Mas também se desequilibrou e caiu, tal como a filha, e ficou presa pelo pé numa corda, a poucos centímetros do chão.
 
Que fariam agora com F. de Riverday que estava no alto da chaminé, como uma cegonha?
 
F. de Riverday era pobre mas tinha alguns móveis raros e antigos na sua casa, que tinham vindo dos seus antepassados.
 
Por causa disso ganhara a inimizade de uma família hotentote que não compreendia o conceito de herança.
 
O mais cómico e ingrato, de certo modo, era que Riverday considerava um belo progresso social  e mesmo um progresso espiritual que o conceito de herança se tornasse incompreensível.
 
Que bela conquista!...
 
Mas como era pobre e nunca poderia ter comprado esses móveis com o seu salário esses amigos recusaram-lhe a confiança no momento em que a consideraram suspeita de actividades ilícitas.

O gelo e o sal

Sonho CCXXIII


Um conhecido de F. de Riverday chegou com um presente na mão.

Era um saleiro que tinha a forma de um eléctrico vermelho e, na ponta, uma pedra de gelo.

Parecia uma dessas recordações que os turistas gostam de levar para casa, mas não se percebia bem o que fosse.
 
Riverday teve vontade de passar a língua na pedra de gelo, mas achou que não seria apropriado.
 
De resto, sabia-se lá por onde tinha andado aquela pedra de gelo.
 
Era uma pedra de gelo especial, que nunca derretia.
 
- O que é isto? - perguntava F. de Riverday.
 
-Ah! Não sabe?... O gelo e o sal?
 
- Não sei, não. - dizia ela.
 
- Mas isso toda a gente sabe.. O gelo e o sal!...
 
- Ora essa! Eu não sei!
 
Ficou a olhar para aquilo deveras intrigada e pelos vistos sem maneira de saber de um modo imediato pelo seu interlocutor o que aquilo era.
 
- Bom - disse ele, depois de uma pausa - e agora já sabe?
 
- Pelo menos sei que é alguma coisa do domínio popular que todos conhecem mas eu não.
 
- Mas isso é nada!
 
- É muito para quem não sabia nada de nada de todo.
 
- Que exagero.
 
- Certo. Mas é alguma coisa e alguma coisa é melhor do que nada.
 
- Pois claro, quanto a isso estamos de acordo.
 
Porque entre aqueles que folgam em desentender-se pelo menos o doseamento da expressão não deixa de ser uma virtude.
 

Sobre a relação flutuante entre a felicidade e a distância

Sonho CCXXII


Podia imaginar-se que este sonho me aconteceu depois de todos os incêndios que grassam na Primavera e no Verão.
 
Mas este sonho aconteceu-me no Inverno, quando não há incêndios.
 
Gostaria de saber que desejo encontraria Freud nos sonhos meramente reflexivos, elocubrativos.
 
Pois é certo que a teoria do desejo nos ajuda a penetrar o sentido opaco de alguns sonhos, pelo menos de um modo provisório.
 
Um desejo de começar a pensar?
 
Eu vivia muito perto do Casino e todas as noites os néons prateados e vermelhos iluminavam a minha sala.
 
A minha casa era apenas uma sala, um estúdio repleto de janelas que não tinham estores que as protegessem da luz.
 
Eu dormia num divã.
 
Saía de noite, sozinha e a pé, mas havia muitas estradas vedadas, com polícia,  por causa dos incêndios.
 
Por todo o lado se entreviam as chamas, mas as chamas estavam longe.
 
Eu queria perceber tudo o que se passava e queria fazer alguma coisa, mas era proibido.
 
Por todo o lado estavam aquelas fitas vermelhas e brancas.
 
Circulava simplesmente por ali, observando tudo o melhor que podia, até me sentir exausta.
 
Quando regressei a casa as pernas doíam-me muito e de um modo agradável.
 
Despi-me e enfiei-me na cama que cheirava a roupa lavada.
 
Senti-me incrivelmente feliz, com o corpo dorido e pesado, nesses escassos segundos antes de adormecer.
 
Como é rápido e fugidio o momento gentil em que nos apagamos!
 
Qualquer drama a uma certa distância não tem um modo seguro de abalar definitivamente a nossa felicidade.
 

Sobre a neutralização do horrível

Sonho CCXXI



Tínhamos ido fazer um passeio à beira-mar, mas o caminho estava cheio de legumes.
 
Batatas e cebolas brotavam da terra e, aqui e ali, viam-se as folhas dos alhos franceses e a rama dos nabos.
 
Eu olhava para os legumes sujos e manchados de negro com um certo repúdio, e dei por mim a pensar:
 
«Mesmo tu não escapas à futilidade e só gostas de coisas lavadas e brilhantes, bem ordenadas em prateleiras luminosas!...»
 
Observava com profunda tristeza quão tão distante estava da terra.
 
Adiante, duas senhoras velhinhas estavam a fazer um pic-nic debaixo de um guarda-sol.
 
«Bela ideia!...» - pensava eu.
 
E no final do caminho à beira-mar podia ver-se uma praia que tinha sido inteiramente remodelada pelas autoridades locais.
 
A intervalos regulares erguiam-se pequenas colunas numa imitação de mármore, semelhantes a pedestais, e, no topo de cada coluna, estava uma mão de plástico com os dedos abertos, iluminada de amarelo fluorescente.
 
Era francamente mau, totalmente inútil, e podia calcular-se que fora gasta uma verdadeira fortuna naquela iluminação de praia. 
 
«Como é que as pessoas podem estender-se aqui e gozar o sol, como se nada fosse?»
 
Parece que a fealdade e o mau gosto, quando inoculados em pequenas doses e de um modo progressivo e constante, criam uma tal habituação, diríamos mesmo tolerância, tal como acontece no abuso de álcool ou drogas (e no sofrimento em geral), isto é, produzem uma tal insensibilidade que acabam por desembocar na indiferença.