Sobre a relação das percepções com o movimento da nossa imaginação

Sonho CCXLVI


Numa reunião, havia um homem que se apresentava do seguinte modo:
 
- R.V.
 
Interessadíssimo, eu observava-o minuciosamente, procurando não dar nas vistas.
 
O cabelo cinzento e um pouco longo, mas penteado com elegância e desprendimento, contribuía para uma aparência estrangeirada, levemente aristocrática.
 
Os traços do rosto, muito finos e muito puros, apesar da idade, pareciam denunciar uma certa austeridade, um certo ascetismo.
 
Havia qualquer coisa no seu rosto de incrivelmente intacto, uma essência que não se desagregava.
 
Ao contrário de certas pessoas que, com a idade, parecem desagregar-se debaixo da pele, ou como os demasiado gulosos ou lascivos, a quem a carne, como nos quadros de Bacon, parece sofrer uma tumefacção imperceptível e progressiva ao longo do tempo, este homem era magro e seco, um pouco altivo, elegante, discreto, parecia traçado a cinzel.
 
Seria um homem realmente belo, não fosse um incrível estrabismo que tornava impossível definir para que ponto da sala estaria a olhar, e, mais ainda, a marcada infelicidade, quase uma humilhação, que lhe transpirava por todos os traços do rosto.
 
Estava morto por ouvi-lo falar, para ver se conseguia  traçar a cartografia da loucura que fazia com que se apresentasse com as iniciais do nome.
 
Teria participado numa guerra?
 
Teria sido espancado, ou violado?
 
Teria vendido a alma ao diabo, a troco de nada?

Estaria arrependido de tudo, e impossibilitado de recomeçar?

De onde lhe vinha aquela humilhação?
 
Que pistas me daria o seu modo de falar?
 
Só no final das cartas em que não estamos de todo presentes é que insistimos em colocar as nossas iniciais, como se disséssemos: «Eis, de mim, esta fraca delegação.»
 
Ou então, na melhor roupa de cama, nos guardanapos de linho, nas camisas, bordam-se as letras que distinguem o nosso primeiro nome e o de família, mas num movimento oposto ao das cartas, para que essas coisas nos pertençam exclusivamente, para que não passem para mais ninguém.
 
Portanto, qual seria a natureza do movimento que orientava este homem marcado pelo sofrimento a falar deste modo?
 
Reservar-se, ou marcar a sua figura social como quem marca uma peça de roupa com uma propriedade exclusiva?
 
Mais ele ficasse em silêncio, mais eu teria elaborado um romance com todas as questões que me ocorriam em paralelo com a investigação da sua figura e do seu rosto, figura e rosto que eram como que os hieróglifos da sua vida, e teria talvez até conseguido especular e delinear o mapa da loucura que pudesse servir de suporte a um tão estranho comportamento.
 
Mal o homem abriu a boca e falou, porém, o movimento da minha imaginação interrompeu-se. O sotaque francês desfez o valor das iniciais que acabara de ouvir em português - Érre  Vê - e recompô-las em francês no nome comum, vulgar - Hervé.
 
Era um homem belo e infeliz, de meia idade, agudamente estrábico, sem aquele grão de loucura que eu desejaria cartografar.